segunda-feira, 25 de abril de 2011

Transexual: um ser indigno?

Nas inúmeras lições de Direito – independentemente do ramo –, é sempre dito que é preciso ter dignidade. O ser humano deve ter dignidade, viver com tal. Contudo, ao se deparar com a discussão moral, social, civil, constitucional e, além de tudo, biológica, a dignidade humana é sobreposta por um impasse histórico e cultural: a mudança de sexo.

As várias (e diferentes) decisões judiciais surgem para aumentar tal discussão. Ora, algumas vezes é dito que não se pode mudar de sexo; por outro lado, decisões dizem que em possível, contanto que seja discriminado em documentos da pessoa que esta é transexual. A evolução das decisões mostra ao mundo uma evolução filosófica e cultural dos juízes do país. As mentes pensantes que estão por trás das decisões que indeferem os pedidos de cirurgia para mudança de sexo devem ser as mesmas que defendem a idéia de que um ser humano não pode dispor da sua própria vida; é incabível tal pensamento em face das mudanças sociais. Em um acórdão sobre a questão, é possível ler tal frase: O sexo integra os direitos da personalidade e não existe previsão de sua alteração; a identidade sexual deve ser reconhecida pelo homem e pela mulher, por dizer respeito à afetividade, à capacidade de amar e de procriar, à aptidão de criar vínculos de comunhão com os outros. Claramente se nota a tentativa desatinada do desembargador em defender suas convicções ao dizer que a identidade sexual diz respeito à afetividade e à capacidade de amar, visto que o mesmo não se recordou que existem seres humanos incapazes de amar ou sentir qualquer empatia com o próximo: os psicopatas. Logo, nesse lamurio pensamento, os psicopatas (sendo estes doentes mentais, apesar de terem total discernimento do que fazem e, ainda, estarem cientes da sua apatia) não se encaixam nesses padrões sociais e poderiam, por exclusão, realizar a cirurgia.

O problema do imbróglio é que o transexual não é tratado como ser humano com dignidade igual a qualquer outro regido pelo Ordenamento. É dito, outrossim, no mesmo acórdão que o transexual não deve ter seu egocentrismo satisfeito uma vez que ele ofenderá a boa ordem e também os indivíduos de má-fé. Todavia o transexual também é uma pessoa de boa-fé; ele deseja apenas viver com dignidade. O que muitos operadores do direito olvidam – no seu suposto notório saber – é que o transexual, antes de sê-lo, é uma mulher nascida em um corpo masculino, e vice-versa. Para ele, viver daquele jeito é viver sem dignidade, bem como um ex-atleta tetraplégico que já não se sente à vontade ao não poder mais realizar suas vontades.

Na obra-prima de Franz Kafka, A Metamorfose, Gregor Samsa acorda, um belo dia, metamorfoseado em um gigante e asqueroso inseto, passando a se isolar de todos; na verdade, não precisa ele se isolar. A própria sociedade já o faz. A sociedade não admite ninguém fora dos padrões, fora do aceitável. Sabendo disso, Gregor se restringe ao seu minúsculo quarto até definhar, visto que ninguém mais o aceitaria. O mesmo acontece com Joseph Merrick, inglês que viveu no séc. XIX, conhecido como Homem Elefante por suas deformidades físicas. Este, por sua vez, tentou mostrar à sociedade que a afetividade e o bom-senso não se fazem com aparências ou padrões sociais, e sim com evolução filosófica. É quase uma questão metafísica.

Aos magistrados imutáveis ao clamor social, percebe-se que falta o empirismo lockeano: suas idéias permanecem inatas ao longo do tempo, independendo de experiências vividas com os anos passados.

É preciso, obviamente, atentar para o princípio da dignidade da pessoa humana e salientar que o transexual que tenta estabelecer uma relação afetiva com outrem não está agindo de má-fé, pois este almeja apenas um vínculo com pessoa do sexo oposto – por assim dizer, nos casos em que o próprio gênero da pessoa é mudado nos documentos. É claro que, o cônjuge que se sinta enganado tem o direito de pedir a anulação do casamento caso este seja realizado com o transexual, visto que tal cônjuge tenha objetivos difusos: queira, por exemplo, constituir família com filhos biológicos. Mas não se pode dizer, jamais, que o transexual agiu de má-fé, ao falar que este só agirá de boa-fé caso deixe explicitado a todos que houve uma mudança de sexo. Ninguém que muda qualquer parte do seu corpo – seja homem ou mulher – tem em algum documento dispositivo explícito de um estado de outrora; não há porque fazer tal coisa com o transexual, em face da sua dignidade. Entretanto é necessário manter uma segurança jurídica na sociedade, ao passo que poderia ser possível a anulação de um casamento nessas circunstâncias, onde o cônjuge do transexual se sentisse violado e enganado; mas, seria mais coerente alegar que o problema é de deficiência física, como nos casos de esterilidade, e não de erro sobre a pessoa, pois o transexual, como seu conceito carrega, já não é mais do sexo de antes, e sim para o qual ele mudou. E, por razão do grande avanço da ciência, essa mutabilidade da natureza é possível nos dias de hoje. Em outro acórdão, é salientado que essa mudança – ou a satisfação egocêntrica – vai contra a natureza, sendo, portanto impossível mudá-la. Entretanto, o próprio Direito já foi contra a natureza ao criar as chamadas “Leis Naturais”; ora, lei é o conjunto de institutos criados pelo homem a fim de reger um Ordenamento jurídico. E, se nada natural pode ser criado ou modificado pelo homem, as leis naturais inexistem, portanto, e todo o nosso Ordenamento vai contra a própria natureza , na medida em que o conceito de lei natural aduz à existência de um direito que está estabelecido na própria natureza humana. Se assim o fosse, todas as leis seriam imutáveis, independentemente de avanço ou clamor social.

Outro aspecto importante que tange o Direito de Família é o princípio da Função Social da Família. O conceito desse princípio traz a idéia de que as relações familiares devem ser analisadas a partir do contexto social em que elas se encontram. Sendo assim, se a família constituída não acarretar problemas, não há por que o Direito interferir de forma tão severa, vetando as cirurgias de mudança de sexo.

Portanto, ao analisar os princípios e o contexto social, é possível dizer que não se faz necessária tamanha resistência a tais cirurgias. Elas não tiram a segurança jurídica do nosso Ordenamento; não há má-fé dos transexuais. É necessário, pois, acompanhar as mudanças sociais.