segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Gélida garrafa

Conta a lenda dentro da minha cabeça que um navio estava a naufragar. Alvoroço, correria, medo. Aquela gélida água não perdoaria ninguém, nem mulheres nem crianças. Os barcos haviam pegado fogo em conseqüência da correria; um lampião caíra neles. O inferno começara ali. Não restava nada senão a morte.

O comandante, como de praxe, havia ficado na cabina, refletindo e pensando se morreria sorrindo ou agonizando. Pôs-se a pensar. Avistou um tinteiro, procurou por folhas e redigira um manuscrito antes que a água tornasse sua azul mortalha. O velho truque da garrafa ajudara-o. Deixou mulher, filhos. Deixou a si mesmo. Traiu o mar. Trinta e sete anos depois, uma velha - já castigada pelo tempo - encontrara um manuscrito numa garrafa de rum. Tinha versos escritos: Morrerei/ Poseidon convocou-me à luta/ Do mar quero ser rei/ Eis meu desalento: árdua labuta.

Longe dali, n'outro continente, um jovem poeta pescava quando avistou um objeto a boiar, não era opaco. Alcançara com a canoa, tirou a rolha. Papel velho. Eis o que continha:

À minha doce amada,
Encontro-me naufragando, à deriva no mar. Não sei se viverei para ver nossos filhos brigando um com o outro. Sinto medo, saudade. Sinto que te amo, minha querida. Os vinte e cinco anos que passamos juntos pareceram vinte e cinco dias, tamanha a intensidade do nosso amor. Sinto que nos amamos o suficiente. Agora sinto tuas mãos se confortando na minha barba malfeita, teus risos das dez da noite, teu grito de prazer, teu sexo. Teu perfume agora toma conta da minha cabine, me entorpece, me encanta. Parece que nunca te vi; amor platônico. Sou aquela criança que tem um amor impossível de colegial. Diga aos nossos filhos que nos amamos de verdade.
Sabia, minha querida, que o pingüim, quando escolhe uma fêmea, passa com esta o resto da sua vida? Somente com ela. Todo o seu prazer se dá em um único deleite.
Teus seios repousam em minha mente para sempre. Eu hei de lembrar-te junto aos corais, aos peixes, às moréias. A saudade já me dói agora, neste último instante de vida que me resta, porque não sei se depois me sentirei confortável ou se amar-te-ei na infinitude, na imensidão do mar. Tua imagem está agora em mim, penetrou na minha pele, foi até o âmago.
Não me esquece, minha amada. Um dia estarei ao lado teu. Enganarei o destino e o tempo; uniremo-nos em morte, bem como ocorreu em vida. Espera-me. Se me amas como te amo, não fiques triste. Estou agora do teu lado. Sou a nuvem mais bonita, a flor mais colorida, o bicho mais voraz. Sou teu desejo mais profundo ou profano. Somos um só agora. Agora vou virar um peixinho, meu amor. Adeus.


As mensagens nunca tiveram outro remetente.

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