terça-feira, 28 de abril de 2009

O tempo conta um conto

Contam que, lá pelo inverno de 1975, um novo casal havia se formado no mundo. Marion conheceu o Sr. Tempesta num Café, umas quatro quadras de sua casa. Aquela estava com seus dezoito belos anos e este já passara da casa dos vinte. Conheceram um ao outro, conheceram-se melhor - se é que me entende - e, num lapso de quatro meses, estavam vivendo juntos. O amor estava à flor da pele e paixão nunca se apagara. Seria mais um daqueles casais tradicionais, vivendo até que a morte os separasse.

Em 1990, Marion levantou-se com de praxe, olhou-se no espelho como sempre fazia e, ao ver o reflexo de Tempesta deitado na cama, a vaidade tomou conta dela, já que percebera que estava, digamos, mais inteira que seu marido. Continuava bela, com rubras bochechas e olhos da cor do infinito. Estava com o mesmo aspecto de dezoito anos atrás, corada, com pele tal qual veludo. Ele já ostentava algumas rugas, barba meio-termo e um bigode um pouco amarelo, almejado após anos de fumo. Naquela manhã não compreendera por que estavam assim: ela tão nova, parecendo que havia dormido uma noite apenas e ele, que teve sua juventude absorvida pelo tempo, estava na sua meia-idade.
Tempesta finalmente acorda e, para a fatídica surpresa de ambos, nesses quinze anos passados, não somente ela deixara de envelhecer, como ele envelhecera pelos dois; parecia ter passado mais de trinta anos para esse pobre rapaz. Teve dificuldade para levantar-se. Sua vista era turva e seus ossos não eram fortes como outrora. Suas lembranças era para ter sido acrescidas de quinze, e não mais de trinta anos. Contam que, a cada ano passado, o tempo lhe dava mais um. E quando estava com cólera total, ainda lhe dava uns meses a mais. O tempo se mostrou amante de Marion; mostrou tamanha paixão por ela, ao ponto de usar seu ofício para sucumbir seu companheiro.

O casal fazia tudo para que o tempo passasse mais devagar. Gladiavam com ele; faziam das menores coisas as melhores lembranças. Já não se importava com a idade, não tinham saudade. Não a tinham porque saudade dói, e eles se mostravam demais forte para o tempo. Este, por sua vez, cada vez com mais ira, fazia os anos passarem como o vento para Tempesta. Sempre deixara escapar um mês ou outro de vida para Marion naqueles dias em que se encontrava embriagado com tanto ódio e solidão. Todas as lutas contra o tempo foram vãs. Quer dizer, em todos os momentos possíveis, o tempo - sem querer - arrastou-se àqueles pés, lutando para correr.

Reza a lenda que, após 2005, o velho sr. Tempesta já não agüentava tanto maltrato do tempo. Estava com seus cento e oito anos, lúcido, lutando dia após dia para sobreviver ao lado de sua amada, com, no máximo, 26 anos. O que queria o tempo? Ele queria Marion.
Em meados de agosto de 2005, o sr. Tempesta não pôde suportar tanto peso, tantas rugas e sucumbiu, deixando Marion sozinha, aos cuidados do tempo. Vai, meu amor, esperar-te-ei nascer de novo, já que minha sina e viver aqui, em função do tempo, disse ela, num último suspiro, numa última agonia.

A partir de então, o tempo observara, noites a fio o pranto da pobre garota, acompanhara sua solidão que, se dependesse do guardião do destino, seria quase que eterna. A cada dia corrente, o tempo tentou de todas as formas se aproximar dela, prometia a vida eterna, prometia somente as melhores lembranças; poderia ela fazê-lo seu capacho. Mas Marion mal falava, apenas sussurrava o nome do seu marido, durante dias seguidos. Dizem que o tempo enlouqueceu. Dizem que coisas estranhíssimas começaram a acontecer no mundo. Diz a boca pequena que uma pandemia aconteceu no começo de 2006, a qual estava prevista para o início de 2009. Houve um rapaz - pelo menos no cinema - que viveu a vida de frente para trás; um tal de colapso econômico, previsto para meados do século XXI, aconteceu no final de 2008. Ninguém compreendia. O tempo havia perdido o juízo, diziam todos. E foi o que realmente aconteceu. O tempo foi criando barba, foi morrendo e jamais compreenderá que, não é ele quem domina o amor, e sim este tem total poder sobre o tempo. O amor brinca com o tempo; o tempo é instrumento do amor. Por tamanha besteira, o tempo pagará com a insanidade eterna, terá sempre de trabalhar a serviço de tal sentimento e a pobre Marion ficará nas mãos quase que eternamente de um tempo tão sozinho quanto ela.


*Inspirado na música "O Tempo" do grupo Móveis Coloniais de Acaju*

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